Assim como luto contra as Pipocas Infinitas, outra batalha a que me proponho é contra o estigma "Cabeça" cunhado em alguns espetáculos em BH. Porquê isso? A depreciação contida nas entreletras da palavra me deixa pasmo. Quer dizer então, minha senhora, que espetáculo comercial (leia-se comédia, não?) não pode falar de temas que fazem pensar?; que espetáculo que não tem homem vestido de mulher, empregada com sotaque, cenário de gabinete, nem faz piadas incorretas, obrigatoriamente é "cabeça"? Para mim, espetáculo é espetáculo, levou um esforço para ficar de pé, é trabalho, e por aí vai. A diferenciação para mim se dá depois que assisto: o espetáculo ficou bom ou ruim?
Assisti a três espetáculos recentemente, todos eles produzidos/dirigidos/atuados por gente querida. Todos, tenho certeza, compreenderão que os problemas/defeitos que aponto são sugestões de melhoria, não intenção de enfraquecer bilheteria, característica que vejo grassar na imprensa por aí. Na verdade, nem precisava escrever essa justificativa, como fez Jean Genet aO Balcão, porque as pessoas inteligentes saberão o que fazer com minhas palavras, mas... e os outros?
PRIMEIRO ROUND - ATRÁS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS (Cia. Pierrot Lunar)
Certas experiências são vividas por mim no tempo certo. Quando terminou o espetáculo, quase uma hora depois do previsto, Neise e Leo se abraçaram emocionados, pareciam que não acreditavam que haviam conseguido. Não sei se eles fazem isso depois de todo espetáculo, a diferença sensorial para mim foi que por pouco (um curto-circuitozinho de nada, que quase coloca a sede do grupo em chamas) o espetáculo não acontecia. Eu fiquei na dúvida: por que raios demorei tanto a assistir aquilo? Repulsa ao nome da peça, mais anti-comercial impossível? Sim. Despeito pelo espetáculo ter apresentado no FIT, e o meu, que concorria a um espaço no mesmo festival, não? Talvez. Falta de iniciativa, bairrismo? Talvez, talvez! Mas acho que assisti ao espetáculo no momento certo: Neise e Leo maduríssimos em seus personagens, um tesão tão latente que era quase visível, um ótimo texto, uma direção precisa, luz expressiva do jeito que eu gosto, figurino não exatamente belo e expressivo mas adequado a uma peça focada no texto e na interpretação. Em dois momentos me incomodei com a agressividade gritada, a cena não se desenvolvia, o texto repetia a mesma ideia, não entendi a necessidade daquilo se prolongar tanto. O objetivo era incomodar? Acertou em cheio mas derramou pros lados, não precisava. Agora fiquei com água na boca para assistir aos dois outros espetáculos do repertório da companhia. Só falta o expediente...
SEGUNDO ROUND - A MANDIOCA BRAVA (Spetaculo - Direção Yuri Simon)
Adaptação de A Mandrágora, do maquiavélico Maquiavel, para uma cidade pequena no interior de Minas. Véi, na boa? É do caralho. É tão bom que é igual mulher madura bem maquiada: tem que chegar de perto pra ver as ruguinhas. O cenário e o figurino parecem ter sido feitos por profissionais em início de carreira, que é quando a gente mais capricha pra fazer bonito: senti um frescor, uma refrescância típica de sangue novo no mercado. E quem são esses caras? Os premiadíssimos Heleno Polisseni e Alexandre Colla, respectivamente. Dois queridos que sabem que não preciso puxar o saco. Talvez a maior ruga do espetáculo seja a dos atores que deixam o trabalho da preparadora Iolene DiStefano se apagar, gerando uma heterogenia entre eles. Há alguns deslizes de interpretação, imperceptíveis a olho nu, que desaparecerão com o amadurecimento do espetáculo. Tudo muito harmonioso, refrescante como uma boa gargalhada, mas o destaque principal para mim é para a música do Leo Mendonza. Maquiavel revira-se no túmulo toda vez que o elenco canta "Ela é um iceberg!!", pois o Mendonza conseguiu ser mais maquiavélico que o próprio! E é uma delícia ver tudo executado ao vivo, dando pausas brechtianas sem configurar a peça como musical. De Yuri nem falo muito porque é uma qualidade que venho acompanhando o amadurecimento há nada menos que vinte anos, e espero que nunca chegue ao auge, pois como diz Marcelo D2, ele estará sempre em busca da direção perfeita. Qual será o espetáculo que encerrará a trilogia, hein, hein?
TERCEIRO ROUND - PRAZER (Cia. Luna Lunera)
Fui assistir decidido a não gostar. Mas que petulância, a desses meninos, achar que podem estrear um espetáculo de Minas em São Paulo, depois fazer temporada no Rio e em Brasília, e ainda por cima inaugurar o teatro do recém-inaugurado Centro de Cultura Banco do Brasil de BH? Desaforo! Mas sabe o que é isso, minha senhora? Inveja. Tenho inveja desses caras que Kalluh Araújo apelidou de kamikases, desses caras que escarafuçam o fazer teatral até chegar na medula, desses meninos eternamente deslumbrados com a magia de estar em cena, da cara exausta desses caras que não vi nem nos melhores atores de Rio/SP, muito menos no espelho. Quero um dia terminar um espetáculo exausto como eles, e molemente deixar isso transparecer, pois essa é a verdadeira cara da vitória. Não tenho retoques na interpretação a oferecer. Foi uma delícia vê-los deslizar, sem arrancos, da interpretação mais naturalista, como se fosse improviso, para o extremismo performático - sem gritos! - mais pungente, avassalador, expressionista, e fazer o caminho de volta como se dissessem "Ops! Sonhamos e deixamos você ver!" E por mais que eu me esforce, só vejo senões no figurino do Marney Heitmann. Tudo bem que precisavam ser costumes neutros - a neutralidade em si já é uma expressão, um signo: "não olhe para mim, tem coisa mais importante para ver!' - , mas deixar o ponto de cor e expressividade somente nos sapatos de Isabela achei pouco, e Odilon parecia pouco à vontade naquela saia, ela não me ajudou a definir o personagem. Achei a luz linda, o cenário também. O resto é porrada, é tempestade de primavera.