ANIMA DECOLORUM EST

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segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

BABAGAMUSH e seu zoo de ANIMAIS NOTURNOS


Já nos créditos iniciais do segundo filme de Tom Ford a mensagem é clara: "você não vai ver um filme comum": mulheres vestidas apenas com acessórios de cheerleaders, brancas, louras e imensamente gordas sensualizam diante de uma cortina de veludo vermelho. Um desfile cívico extremamente fora do comum ou, melhor explicando, fora do clichê.

E é só a primeira de uma série de quebras de clichê que o filme apresenta.

As cenas dos créditos iniciais se explicam logo na sequência seguinte: são vídeos que compõem uma exposição apresentada na galeria comandada pela personagem de Amy Adams, Susan.

Começa aí um intrincado novelo de metáforas e signos. Apesar de bem sucedida com sua galeria e do imenso sucesso daquela exposição, apesar de casada com o "homem dos sonhos" (lindo, gostoso e absurdamente rico) e mãe de uma linda adolescente, Susan se questiona o tempo todo - seu casamento, sua relação com a filha, sua galeria e as obras que expõe. Esse clima de insatisfação permeia todo o seu sistema de escolhas, desvendado lentamente ao longo do filme.

Eis que entra em cena o ex-marido de Susan, Edward (Jake Gyllenhal, minha aposta para o Oscar. Não foi nem indicado ao Globo de Ouro). Ele manda a Susan o datiloscrito de seu primeiro livro, "Animais Noturnos". Mais semiótica aqui: ao tentar abrir o pacote, Susan se corta no fio do papel do embrulho. O sangue - a primeira gota apresentada, de muitas que se seguem - a faz tomar mais cuidado, e a predispõe a "penetrar" no livro com mais força do que o faria sem o acidente.

O livro conta uma história terrível. Um encontro desastroso numa estrada deserta do estado americano do Texas que gera consequências inomináveis. O alívio - se é que é permitido se sentir algum - é saber que aquelas cenas estão sendo imaginadas pela leitora, Susan. E o impacto é tão grande que ela começa a se recordar da relação que teve com Edward. Então, como na peça de Nelson Rodrigues, Vestido de Noiva (1943), realidade, memória e ficção se intercalam e vão revelando aos poucos o que está por trás daquela história tão trágica.

Cara, que filmaço. É preciso estômago para encarar as cenas imaginadas por Susan em sua leitura? É. Você fica na pontinha da cadeira, como eu costumo dizer de filmes de suspense? Fica. Mas é um filme de suspense? Não.

É um filme sobre a arte da escolha. Cada uma que fazemos nesta vida se desdobra em mil outras, e cada uma gera consequências. A arte está em termos ciência destas consequências, e o modo como nos preparamos para lidar com elas. Neste quesito, Susan é totalmente despreparada. Ao escolher abrir a primeira página do livro de Edward, nem imagina que ali em suas mãos está a consequência de uma série de outras escolhas que fez.

Dali pra frente, tudo é irreversível.

Em termos visuais, é bom lembrar que Tom Ford foi estilista (ou é, mas bissexto agora), e dos bons (é de um modelo dele o registro do único sorriso de Miranda Priestly), e seu apuro técnico é de babar. Sabe como poucos explorar a beleza de um corpo nu, a beleza ameaçadora de um por-do-sol, a pureza fria de uma galeria de arte ou o tétrico terror de uma casa toda de vidro numa Los Angeles absolutamente asséptica. A fotografia é, se posso me expressar dessa maneira, composta de cores macias, e nem as cenas mais violentas apresentam cores berrantes - a cena do sofá no meio do deserto é simplesmente deslumbrante e minimiza com sua beleza estética a tragédia que representa. A música é tudo menos óbvia, e a edição final (que cortou um nu frontal de Aaron Taylor-Jonhson, ganhador no Globo de Ouro de ator coadjuvante) te faz grudar na cadeira, como só os bons filmes conseguem.

Pontas geniais (Martin Sheen, Laura Linney) ajudam a dar o clima de absurdo na intersecção entre a realidade asséptica de Susan e a história suja e terrível que ela lê.

E não se enganem com o imenso quadro que Susan redescobre em sua própria galeria, e que apresenta a palavra Revenge (vingança) em branco sobre preto. Não é a chave para o filme. A chave está nesta mesma cena, mas na imagem verde (visão noturna) de um bebê dormindo tranquilamente em um telefone que se quebra.

Sem dúvida, uma das mais extraordinárias experiências cinematográficas da minha vida. Esse, sim, um clichê pavoroso. Rsrsrs...