Já nos créditos iniciais do segundo filme de Tom Ford a mensagem é
clara: "você não vai ver um filme
comum": mulheres vestidas apenas com acessórios de cheerleaders, brancas, louras e
imensamente gordas sensualizam diante de uma cortina de veludo vermelho. Um
desfile cívico extremamente fora do comum ou, melhor explicando, fora do clichê.
E é só a primeira de uma série de quebras de clichê que o filme
apresenta.
As cenas dos créditos iniciais se explicam logo na sequência seguinte:
são vídeos que compõem uma exposição apresentada na galeria comandada pela
personagem de Amy Adams, Susan.
Começa aí um intrincado novelo de metáforas e signos. Apesar de bem
sucedida com sua galeria e do imenso sucesso daquela exposição, apesar de
casada com o "homem dos sonhos" (lindo, gostoso e absurdamente rico)
e mãe de uma linda adolescente, Susan se questiona o tempo todo - seu
casamento, sua relação com a filha, sua galeria e as obras que expõe. Esse
clima de insatisfação permeia todo o seu sistema de escolhas, desvendado
lentamente ao longo do filme.
Eis que entra em cena o ex-marido de Susan, Edward (Jake Gyllenhal,
minha aposta para o Oscar. Não foi nem indicado ao Globo de Ouro). Ele manda a
Susan o datiloscrito de seu primeiro livro, "Animais Noturnos". Mais
semiótica aqui: ao tentar abrir o pacote, Susan se corta no fio do papel do
embrulho. O sangue - a primeira gota apresentada, de muitas que se seguem - a
faz tomar mais cuidado, e a predispõe a "penetrar" no livro com mais
força do que o faria sem o acidente.
O livro conta uma história terrível. Um encontro desastroso numa
estrada deserta do estado americano do Texas que gera consequências
inomináveis. O alívio - se é que é permitido se sentir algum - é saber que
aquelas cenas estão sendo imaginadas pela leitora, Susan. E o impacto é tão
grande que ela começa a se recordar da relação que teve com Edward. Então, como
na peça de Nelson Rodrigues, Vestido de Noiva (1943), realidade, memória e
ficção se intercalam e vão revelando aos poucos o que está por trás daquela
história tão trágica.
Cara, que filmaço. É preciso estômago para encarar as cenas imaginadas
por Susan em sua leitura? É. Você fica na pontinha da cadeira, como eu costumo
dizer de filmes de suspense? Fica. Mas é um filme de suspense? Não.
É um filme sobre a arte da escolha. Cada uma que fazemos nesta vida se
desdobra em mil outras, e cada uma gera consequências. A arte está em termos
ciência destas consequências, e o modo como nos preparamos para lidar com elas.
Neste quesito, Susan é totalmente despreparada. Ao escolher abrir a primeira
página do livro de Edward, nem imagina que ali em suas mãos está a consequência
de uma série de outras escolhas que fez.
Dali pra frente, tudo é irreversível.
Em termos visuais, é bom lembrar que Tom Ford foi estilista (ou é, mas
bissexto agora), e dos bons (é de um modelo dele o registro do único sorriso de
Miranda Priestly), e seu apuro técnico é de babar. Sabe como poucos explorar a
beleza de um corpo nu, a beleza ameaçadora de um por-do-sol, a pureza fria de
uma galeria de arte ou o tétrico terror de uma casa toda de vidro numa Los
Angeles absolutamente asséptica. A fotografia é, se posso me expressar dessa
maneira, composta de cores macias, e nem as cenas mais violentas apresentam
cores berrantes - a cena do sofá no meio do deserto é simplesmente deslumbrante
e minimiza com sua beleza estética a tragédia que representa. A música é tudo
menos óbvia, e a edição final (que cortou um nu frontal de Aaron
Taylor-Jonhson, ganhador no Globo de Ouro de ator coadjuvante) te faz grudar na
cadeira, como só os bons filmes conseguem.
Pontas geniais (Martin Sheen, Laura Linney) ajudam a dar o clima de absurdo
na intersecção entre a realidade asséptica de Susan e a história suja e
terrível que ela lê.
E não se enganem com o imenso quadro que Susan redescobre em sua
própria galeria, e que apresenta a palavra Revenge (vingança) em branco sobre
preto. Não é a chave para o filme. A chave está nesta mesma cena, mas na imagem
verde (visão noturna) de um bebê dormindo tranquilamente em um telefone que se
quebra.
Sem dúvida, uma das mais extraordinárias experiências cinematográficas da minha vida. Esse, sim, um clichê pavoroso. Rsrsrs...
Sem dúvida, uma das mais extraordinárias experiências cinematográficas da minha vida. Esse, sim, um clichê pavoroso. Rsrsrs...
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