ANIMA DECOLORUM EST

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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O QUE ME CHOCA 14 - 09 DE FEVEREIRO DE 2016

FALTA DE NOÇÃO É UMA COISA QUE ME CHOCA

Principalmente quando se refere a política, direitos humanos e civilidade.

Privilégio todo mundo quer. É a expressão máxima do poder, essa coisa viciante, essa praga mais letal que a Peste Bubônica. O privilégio põe você em um degrau acima – não importa do quê, mesmo que seja em cima de uma caixa de fósforos, você estará acima. E privilégio é um doce delicioso, tão doce que provoca cegueira.

Cegueira que eu chamo, claro, de falta de noção.

Ninguém quer perder o privilégio que conquistou, mesmo que aquele que trabalhou para que o privilégio fosse conquistado esteja morto há duas ou três gerações. A coisa do privilégio entra DNA afora e se espalha, tornando natural tudo o que se faz para mantê-lo.

E uma vez privilegiado, a falta de noção ataca com força.

E que força.

É aquela coisa da empatia, já falada aqui. Quem não tem noção não tem empatia. E quem não tem empatia nem noção não está nem aí.

Funciona assim: sou privilegiado, logo não tenho que dar satisfação. Mesmo que eu esteja sendo sustentado em minha vagabundagem com dinheiro público, ninguém tem nada com isso. É privilégio, conquistei, está conquistado. Sou privilegiada, por isso não preciso pedir desculpas. Você deve tirar o seu carro da frente, sim, mesmo que a preferência seja sua – meu carro é beeeeeeem mais caro que o seu, logo, é símbolo de privilégio, logo, sou privilegiado, logo, estou acima de você, logo, você me deve respeito.

O privilégio inclusive isenta você de se informar o suficiente para um debate, uma troca de ideias, uma discussão. Basta dizer “Você não sabe de nada” ou o mais na moda “Sabe nada, inocente...” que aí você nivela o outro à falta de argumentos que é sua e acaba por vencer o debate – eis outro ponto fundamental no sem-noção: ele não perde nunca, não pode perder, porque quem perde não é privilegiado.

E o sem-noção é muito mais que simplesmente um péssimo perdedor: ele adora rir da sua cara quando ganha o tal debate. Ele não só te desqualifica: ele te humilha.

O sem-noção escolhe um canal de tevê, um jornal, uma revista e um site para obter informação, e já está de excelente tamanho. Qualquer que seja a porcaria que esses órgãos de imprensa publicam, o sem-noção vai sempre considerá-la “informação pétrea”, descartando toda e qualquer possibilidade de contestação, correção ou acareação. Tipo “a revista Spia e o jornal Fruta disseram que o macarrão é feito de carne humana, então é verdade inconteste”.

O sem-noção não quer nem saber se aquela roupa não lhe cai bem, ele vai usar porque “é o que está usando agora”, é o que a revista Coroas está mandando usar, e ponto final.

O sem noção é aquele que diz pro automóvel que está rodando à sua frente “ô, lesma, sai da minha frente!” e pro que está rodando atrás “passa por cima!” praticamente ao mesmo tempo.

O sem-noção é aquele que nunca tem tempo pra nada, mas anda com dois celulares, um tablet e um notebook para estar sempre conectado em alguma coisa que não está aqui agora. O aqui-agora pro sem-noção é uma falácia inventada pelos tibetanos petralhas comunistas para disseminar o seu veneno de que a consciência e a conscientização são as ferramentas para ser humano no século XXI, que já começou, sabia?

O sem-noção não cede lugar pra grávida ou idoso; fala alto em restaurante; não gosta de ouvir o que o outro tem a dizer – seu fluxo de “boas-histórias-que-você-tem-que-ouvir” é inesgotável; fuma em lugares fechados; fica pegando sem parar na pessoa com quem está conversando.

O sem-noção considera a sala de cinema a sala de sua própria casa: não está nem aí se o saco de pipoca ou bala que levou vai fazer muito barulho, a cada segundo verifica o celular pra ver se chegou alguma mensagem; tem aqueles que vão mais longe: atendem o telefone e conversam tranquilamente; tem os que ficam batendo os pés na poltrona da frente, sem se preocupar se tem alguém sentado nela; tem os que chegam dez minutos depois que o filme começou, quer sentar no meio da fileira e faz questão de ficar em pé enquanto não encontra um assento; e tem os que levam filhos muito pequenos e os deixam correr pelos corredores, ficar em pé nas poltronas.

O sem-noção considera o filho pequeno como o mandatário superior do planeta. Não importa se ele está gritando ou fazendo barulho para chamar atenção durante uma conversa de adultos; não importa se ele joga objetos no telhado do vizinho; não importa se ele toma o brinquedo do amigo ou irmão; não importa se ele corta os bigodes do gato da vizinha; não importa se ele rabisca no livro emprestado da biblioteca pública; não importa se ele não sabe dividir, não sabe brincar, não se importa: ele sempre vai ter razão e um pai para defendê-lo e fazer as coisas por ele.

O sem-noção se reproduz numa velocidade superior à dos coelhos. Acho mesmo que se reproduz por osmose, bipartição ou em cantos úmidos e escuros. Está tão espalhado, tão arraigado, tão enterrado no DNA que, a qualquer momento, não ter noção será a regra, e não a exceção.



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