FALTA DE NOÇÃO É UMA COISA QUE ME CHOCA
Principalmente quando se refere a
política, direitos humanos e civilidade.
Privilégio todo mundo quer. É a
expressão máxima do poder, essa coisa viciante, essa praga mais letal que a
Peste Bubônica. O privilégio põe você em um degrau acima – não importa do quê,
mesmo que seja em cima de uma caixa de fósforos, você estará acima. E
privilégio é um doce delicioso, tão doce que provoca cegueira.
Cegueira que eu chamo, claro, de
falta de noção.
Ninguém quer perder o privilégio
que conquistou, mesmo que aquele que trabalhou para que o privilégio fosse
conquistado esteja morto há duas ou três gerações. A coisa do privilégio entra
DNA afora e se espalha, tornando natural tudo o que se faz para mantê-lo.
E uma vez privilegiado, a falta
de noção ataca com força.
E que força.
É aquela coisa da empatia, já
falada aqui. Quem não tem noção não tem empatia. E quem não tem empatia nem
noção não está nem aí.
Funciona assim: sou privilegiado,
logo não tenho que dar satisfação. Mesmo que eu esteja sendo sustentado em
minha vagabundagem com dinheiro público, ninguém tem nada com isso. É
privilégio, conquistei, está conquistado. Sou privilegiada, por isso não
preciso pedir desculpas. Você deve tirar o seu carro da frente, sim, mesmo que
a preferência seja sua – meu carro é beeeeeeem mais caro que o seu, logo, é
símbolo de privilégio, logo, sou privilegiado, logo, estou acima de você, logo,
você me deve respeito.
O privilégio inclusive isenta
você de se informar o suficiente para um debate, uma troca de ideias, uma
discussão. Basta dizer “Você não sabe de nada” ou o mais na moda “Sabe nada,
inocente...” que aí você nivela o outro à falta de argumentos que é sua e acaba
por vencer o debate – eis outro ponto fundamental no sem-noção: ele não perde
nunca, não pode perder, porque quem perde não é privilegiado.
E o sem-noção é muito mais que
simplesmente um péssimo perdedor: ele adora rir da sua cara quando ganha o tal
debate. Ele não só te desqualifica: ele te humilha.
O sem-noção escolhe um canal de
tevê, um jornal, uma revista e um site para obter informação, e já está de
excelente tamanho. Qualquer que seja a porcaria que esses órgãos de imprensa publicam,
o sem-noção vai sempre considerá-la “informação pétrea”, descartando toda e qualquer
possibilidade de contestação, correção ou acareação. Tipo “a revista Spia e o
jornal Fruta disseram que o macarrão é feito de carne humana, então é verdade
inconteste”.
O sem-noção não quer nem saber se
aquela roupa não lhe cai bem, ele vai usar porque “é o que está usando agora”,
é o que a revista Coroas está mandando usar, e ponto final.
O sem noção é aquele que diz pro
automóvel que está rodando à sua frente “ô, lesma, sai da minha frente!” e pro
que está rodando atrás “passa por cima!” praticamente ao mesmo tempo.
O sem-noção é aquele que nunca
tem tempo pra nada, mas anda com dois celulares, um tablet e um notebook para
estar sempre conectado em alguma coisa que não está aqui agora. O aqui-agora
pro sem-noção é uma falácia inventada pelos tibetanos petralhas comunistas para
disseminar o seu veneno de que a consciência e a conscientização são as
ferramentas para ser humano no século XXI, que já começou, sabia?
O sem-noção não cede lugar pra
grávida ou idoso; fala alto em restaurante; não gosta de ouvir o que o outro
tem a dizer – seu fluxo de “boas-histórias-que-você-tem-que-ouvir” é inesgotável;
fuma em lugares fechados; fica pegando sem parar na pessoa com quem está
conversando.
O sem-noção considera a sala de
cinema a sala de sua própria casa: não está nem aí se o saco de pipoca ou bala
que levou vai fazer muito barulho, a cada segundo verifica o celular pra ver se
chegou alguma mensagem; tem aqueles que vão mais longe: atendem o telefone e
conversam tranquilamente; tem os que ficam batendo os pés na poltrona da
frente, sem se preocupar se tem alguém sentado nela; tem os que chegam dez
minutos depois que o filme começou, quer sentar no meio da fileira e faz
questão de ficar em pé enquanto não encontra um assento; e tem os que levam
filhos muito pequenos e os deixam correr pelos corredores, ficar em pé nas poltronas.
O sem-noção considera o filho
pequeno como o mandatário superior do planeta. Não importa se ele está gritando
ou fazendo barulho para chamar atenção durante uma conversa de adultos; não
importa se ele joga objetos no telhado do vizinho; não importa se ele toma o
brinquedo do amigo ou irmão; não importa se ele corta os bigodes do gato da
vizinha; não importa se ele rabisca no livro emprestado da biblioteca pública;
não importa se ele não sabe dividir, não sabe brincar, não se importa: ele
sempre vai ter razão e um pai para defendê-lo e fazer as coisas por ele.
O sem-noção se reproduz numa
velocidade superior à dos coelhos. Acho mesmo que se reproduz por osmose,
bipartição ou em cantos úmidos e escuros. Está tão espalhado, tão arraigado,
tão enterrado no DNA que, a qualquer momento, não ter noção será a regra, e não
a exceção.
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